Friday, May 09, 2008

70 maneiras de contraditar o instinto da morte com um futuro assim cor-de-rosa


"Viena, 7 de fevereiro de 1930
Caro Dr. Pfister,
Chove lá fora e, assim, tenho uma hora diante de mim para responder à sua bondosa carta de ontem, sem maiores delongas.
Nem todas as notícias que você dá de sua pessoa são boas, mas que direito temos nós de esperar que tudo deva andar favoravelmente? De qualquer modo, fico satisfeito com pelo fato de você escrever sobre você mesmo e sobre seu trabalho, suas esperanças e frustrações. A distância física faz facilmente com que as pessoas se afastem, se não têm notícia uma da outra e não passem por experiência comuns. Há alguma coisa especialmente preciosa acerca das relações pessoais que o trabalho compartilhado assim como os interesses de ambas as partes não podem substituir completamente; e nós ambos, neste momento, quando nos tornamos consciente das diferenças irredutíveis, fundamentais entre nossas atitudes básicas em relação à vida, temos uma razão particular - e, espero, uma tendência - a incrementar tais relações.
Você está certo ao afirmar que os meus poderes mentais não se arrefeceram com os anos que me sobre passam (mais de setenta), embora essa capacidade registre marcadamente a influência da idade. Há três maneiras de efetivar-se a desintegração dentre as quais a natureza faz a sua escolha, segundo os casos individuais - a destruição simultânea da mente e do corpo, a decadência mental prematura acompanhada da preservação física e a sobrevivência da vida mental acompanhada do declínio físico; e, em mim, o terceiro caso e o mais benevolente é que se tem verificado. Muito bem, então tirarei partido dessa circunstância favorável a fim de contraditar a sua sumária indulgentemente crítica por meio de uma defesa modesta ainda mais sumária.
Examinarei apenas um ponto. Se duvido do destino do homem que ascenda através da civilização até o estado de maior perfeição, se vejo em sua vida uma luta constante entre Eros e o instinto da morte, cujo resultado me parece indeterminável, acredito que, ao chegar a tais conclusões, não tenha sido influenciado por quaisquer de meus fatores constitucionais ou por atitudes emocionais adquiridas. Não sou um autoflagelador nem um fomentador malicioso de discórdias. Gostaria de dar-me a mim mesmo e aos outros algo de bom, e acharia muito mais belo e consolador se pudéssemos contar com um futuro assim cor-de-rosa. Mas isto me parece um outro exemplo de ilusão (uma satisfação de desejos) que se acha em conflito com a verdade. A questão não é saber que espécie de crença é mais confortadora ou mais cômoda ou mais vantajosa para a vida, mas sim qual delas pode aproximar-se mais intimamente da enigmática realidade que, afinal de contas, existe fora de nós. O instinto de morte não é uma exigência do meu coração; parece ser inevitavelmente um pressuposto, tanto no terreno biológico quanto no terreno lógico e psicológicio. O resto segue-se dessa constatação. Desta forma, a mim o meu pessimismo parece uma pressuposição a priori. Deveria também afirmar que realizei um casamento de conveniência com as minhas tenebrosas teorias, enquanto os outros vivem com as suas num colóquio amoroso. Espero que alcancem uma felicidade maior desse fato do que eu.
Sem dúvida, é perfeitamente concebível que eu possa estar enganado em relação a todos esses três pontos - a independência das minhas teorias em relação à minha índole, a avaliação dos meus argumentos para a fundamentação dessas teorias e o seu conteúdo. Você bem sabe que, quanto mais imponente é a expectativa, tanto menos é a certeza que a cerca, e também maior a paixão - na qual não desejamos ser envolvidos - com que os homens tomam suas posições.
Posso imaginar que há milhões de anos atrás, na idade Triásica, todos os grandes -odontes e -térias mostravam-se orgulhosos do desenvolvimento da raça dos sáurios e olhavam para o futuro sabe lá Deus com que expectativas de um porvir grandioso para eles mesmos. E, então, com a exceção do desgraçado crocodilo, todos eles sucumbiram. Você objetará: "Muito bem, mas esses sáurios não pensaram nada disso! Não pensavam em nada a não ser forrar o seu estômago. O homem, todavia, acha-se equipado com uma mente que o capacita a pensar acerca do seu futuro e a nele acreditar." Está certo, há seguramente algo de especial em relação à mente, embora muita pouca coisa se saiba a seu respeito e sobre a sua relação com a natureza. Eu, pessoalmente, tenho um grande respeito pela mente, mas terá a natureza este mesmo respeito? A mente é apenas uma pequena parte da natureza, o restante da qual parece passar-se muito bem sem ela. Será que a natureza se permitirá a si mesma ser influenciada, de uma forma de qualquer modo mais extensa, em referência à mente?
Invejável é aquele que se sente mais confiante acerca de tudo isso do que eu.
Com cordiais saudações,
Freud"

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