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Antes de entender algumas relações de causa e efeito, eu também era um social-democrata-padrão-zona-sul-carioca, ou seja, eu era um "social-democrata" que votava em socialistas do PT como o Chico Alencar. Depois que os petistas chegaram ao poder e colocaram, como observou o Paulo Betti, "a mão na merda", o Chico e mais alguns amigos do "outro mundo possível" saíram do PT e fundaram o PSOL, um partido sem vergonha de misturar - dialeticamente, claro - socialismo com liberdade. Mesmo fora do PT, o Chico Alencar não se tornou exatamente da oposição, ele só acha que o partido no poder ainda não fez o suficiente pra tornar realmente possível o "outro mundo possível". "Se a presidente eleita do Brasil e os novos governadores, deputados e senadores quiserem de fato representar novidade para o povo, precisarão realizar, sempre empurrados pela mobilização popular, os ‘dez mandamentos’ que se seguem: 1) Reforma Agrária e Urbana ecológicas, com a limitação do tamanho das propriedades e o uso social dos imóveis urbanos estocados para especulação." Sei lá quantas centenas de milhares de "sem-terras" já foram assentados desde o governo FHC, mas - mesmo recebendo subsídios - não conseguem produzir o suficiente pra própria subsistência. Isso acontece porque plantar não é bem a praia do MST, um movimento de inspiração maoísta cujo objetivo maior é servir de ponta de lança pra demonização dos "ruralistas" (imagine o Ronaldo Caiado de chapelão num alazão) e a conseqüente estatização do campo, desejo antigo das esquerdas. A coisa é complicada porque foram justamente as exportações dos "ruralistas" que garantiram, até agora, os superávits da balança comercial que ajudaram a bancar a demagogia do PT. Então o governo vai empurrando com a barriga, sendo cúmplice das invasões dos seus companheiros ideológicos ao mesmo tempo em que tenta agradar os "ruralistas" (que pagam a conta) com protecionismo e crédito subsidiado. E o "uso social dos imóveis estocados para especulação" pode ser traduzido como o "uso socialista dos imóveis estocados para especulação", ou seja, desapropriação. É tudo feito na base da coerção, mas com muito amor no coração. "2) Mudança na política econômica, com controle dos capitais especulativos que entram e saem do país e auditoria da dívida pública, cujos juros e serviços consomem 36% do orçamento nacional." A dívida pública não foi obra, pra usar uma imagem que o católico Chico deve conhecer bem, do Espírito Santo, foi resultado de décadas de políticas equivocadas - a gente pode não ter a explicação pra tudo, mas tudo tem uma explicação - e o país paga esse passivo todo por não ter levado a sério a austeridade fiscal ao mesmo tempo em que levava a sério o conto do governo "indutor do desenvolvimento". São as conveniências da disputa pelo poder, sabe? (imagine o Gollum atrás do anel) Se uma pessoa não paga o que o governo diz que ela deve, ela é presa. Se o governo não paga o que deve, o governo chama isso de "moratória soberana" ou "calote compassivo" e estamos conversados, governos não precisam se submeter às mesmas regras que os seus cidadãos, não é verdade? Se o governo quiser, ao menos, rolar a dívida pra não acabar completamente com os investimentos externos, o "controle dos capitais especulativos" do Chico Alencar vai dificultar até mesmo a rolagem dessa dívida, porque são justamente esses capitais que a financiam. Se os capitais não sabem se vão poder sair, por que eles entrariam? "3) Prioridade para saúde e educação públicas, com meta de comprometimento de 10% do PIB em cada setor até o final dos mandatos." Aqui você vê claramente como funcionam os incentivos no serviço público: quanto menos resultado ele dá, mais recursos ele se sente no direito de pedir. Como a maioria acha que a educação e a saúde devem ser responsabilidade do estado, a arapuca está armada. As crianças então são obrigadas por lei a freqüentar as escolas do governo ou aprovadas pelo governo - com o currículo monopolizado pelo governo - pra aprenderem que a educação deve ser fornecida "de graça" pelo governo, caso contrário os especuladores comprariam todas as nossas riquezas naturais a preço de banana, o Brasil ficaria sempre nos últimos lugares dos testes internacionais e o ciclo não fecharia. Ficou confuso? Culpe o MEC. "4) Garantia e ampliação dos direitos trabalhistas, com redução da jornada para 40 horas semanais, sem redução de salários." Olha a caneta mágica: o salário não tem relação com a produtividade, tem relação com as leis que regem as relações trabalhistas. Por que então não baixar de 40 pra 20 horas semanais sem redução do salário? Aliás, por que não determinar logo de uma vez que ninguém pode ganhar menos de 10 mil reais + benefícios? A caneta do governo é mágica, gente. "5) Cuidado absoluto com a ‘Mãe Terra’ tão espoliada, o que, no Brasil, significa combate à revisão do Código Florestal no interesse dos grandes fazendeiros e Desmatamento Zero na Amazônia, além da preservação de todos os biomas." Como é que o Chico Alencar espera que as pessoas comam com a "preservação de todos os biomas"? Onde as pessoas vão plantar ou criar os animais que vão nas feijoadas que o Chico Alencar e a galera da esquerda festiva gosta de comer? E o que significa "desmatamento zero" na Amazônia? As pessoas estão proibidas de morar lá? Bem que o Zizek avisou que os esquerdistas estão "masoquisticamente" apostando num grande desastre ambiental... Eles apostam e os outros sofrem. Sem a produção em massa dos "grandes fazendeiros" que não preservam "todos os biomas", os "espoliados" - ao invés da "Mãe Terra" - seriam os mais pobres prejudicados pela escassez de comida, enquanto a "Mãe Terra" do Chico Alencar ficaria virgem e intocada pelo homem mau e impuro, praticamente uma Nossa Senhora verde. "6) Reforma Política com participação popular, na direção do fortalecimento dos partidos que têm doutrina, do financiamento público exclusivo das campanhas, da promoção de plebiscitos e referendos sobre grandes temas nacionais." Venezuela, here we go. Gostaria de propor também um plebiscito: socialistas como o Chico Alencar olham pro que tá acontecendo na Venezuela e acham realmente que as coisas tão melhorando por lá? You'll be the judge. E concordo, o "financiamento público exclusivo das campanhas" acabaria com o caixa 2, tenho fé no Deus da Teologia da Libertação que sim. "7) Fortalecimento do combate à corrupção, com transparência total e equipando melhor a Controladoria Geral da União, as controladorias estaduais e o Ministério Público." Quem fiscaliza os fiscais dos fiscais? O que combateria de fato a corrupção seria a desregulação da economia, que acabaria com a criação de dificuldades pra venda de facilidades, mas isso deixaria os políticos e burocratas sem o que fazer, melhor jogar conceitos como "transparência total" ao vento a se render ao livre-mercado. "8) Mudança progressiva do modelo energético, com a Petrobras 100% estatal e recursos do Pré-Sal voltados para as áreas social e ambiental." Beleza, Petrobras 100% estatal, nem Vargas foi tão "progressista". Se bem que essa concentração de recursos nas "áreas social e ambiental" não ia agradar muitos dos amigos e eleitores do Chico, cadê a verba do Pré-Sal pra cultura? "9) Força aos Direitos Humanos: combate aos preconceitos, consolidação dos direitos de mulheres, negros e povos indígenas, além de abertura total dos arquivos da ditadura e democratização dos meios de comunicação." Toda essa generosidade do Chico Alencar com os grupos que ele considera oprimidos se dá na marra, porque o governo é imposição, não esqueça disso antes de enxergar uma auréola de paz e amor na cabeça de quem fala em tirar de A pra dar pra B. Fora da igualdade perante a lei não há salvação. Em relação à "abertura total dos arquivos da ditadura", eu não me oponho, desde que os militantes armados que lutaram contra os militares também abram os seus arquivos e provem que não lutavam por uma ditadura ainda pior, uma ditadura comunista. Agora no poder, dizem que lutavam pela "democracia", mas você sabe como é a dialética, né? Por exemplo, a "democratização dos meios de comunicação", no caso, significa "controle pelo governo", e é lógico que eu apóio (numa vaibe meio Zizek) a idéia do governo controlar a imprensa, é assim nas melhores "democracias". "10) Política internacional independente, contra todos os hegemonismos, reforçando a relação Sul-Sul." Não podia faltar o tradicional antiamericanismo nessa pururuca ideológica, melhor se aliar a Venezuela, Bolívia, Cuba, Irã ou alguma ditadura africana a "se submeter" aos estadunidenses. Disso o Chico Alencar não tem mesmo do que reclamar, porque foi essa a política no Itamaraty do Celso Amorim nos últimos anos. "Só assim teremos, na política, o Advento de um vento novo, que abala a calmaria da prosseguida injustiça!" Como se o vento desse "Advento" já não tivesse soprado em várias outros lugares e fedido pra caramba. A ideologia deve ter subtraído mais-valia do olfato desses caras, não é possível. (http://youpode.com.br/blog/chicoalencar/2010/12/07/os-maiores-desafios-para-o-novo-governo/)